Olá, meu nome é Milena e como escrevi no meu perfil, sou autista e fui diagnosticada este ano, no alto dos meus 42 anos!
*Antes de começar preciso dizer que cada autista tem suas próprias dificuldades e habilidades. Nenhum autista é igual ao outro. O que é difícil para mim pode ser fácil para você assim como o que pode ser fácil para mim pode ser difícil pra você. Portanto é importante não haver comparações entre autistas. O seu processo pode ser diferente do meu. Cada um tem sua própria trilhas, mas o que quero dizer é que, mesmo tão diferentes entre nós, todos somos capazes!
Eu sempre me achei diferente, mas não entendia o que era. Desde a infância eu tentava fazer parte dos grupos da escola, mas raramente alguém me aceitava. Então eu só tinha uma melhor amiga. Sempre. E era dependente emocionalmente dela. Quando ela faltava na escola eu ficava sem chão. Era ela que fazia a ponte entre mim e todo o mundinho escolar.
Quando ela foi embora, rapidamente tratei de encontrar e "nomear" uma nova melhor amiga. Mas eu notava que nem sempre ela queria ficar "só" comigo. Ela também tinha outras amigas e queria estar com elas. Mas eu queria aquela amiga só pra mim.
Meus pais se separaram quando eu tinha mais ou menos 5 anos. Belém do Pará, década de 80.
Meu pai sempre me ajudou muito nas minhas dificuldades motoras. Mesmo sem saber do autismo, como ele era médico, hoje eu penso que ele, intuitivamente, desconfiava de alguma coisa, porque ele me ajudava em tudo, até mesmo para comer ou amarrar os sapatos.
Ele me dava aulas quase todos os dias e eu sempre tirava notas altas. Me levava e trazia da escola todos os dias. Também me levava para as aulas de balé e música. Ele tinha tempo, pois já estava aposentado da universidade onde ele era professor e das Forças Armadas.
Já minha mãe trabalhava muito, era bancária e só conseguia chegar em casa tarde da noite. Ela batalhava muito para manter um padrão de vida onde não nos faltasse nada. Cuidou muito da minha alimentação, vestimentas, brinquedos, passeios, conforto em geral. Também me ajudava a fazer trabalhos escolares e me levava para a igreja aos domingos, onde eu fiz também algumas amigas.
Não tive maiores problemas na minha primeira infância em relação ao autismo. Mas sei que dei muito trabalho para meus pais, pois tinha muita seletividade alimentar e era muito magra. Tinha como hiperfoco as músicas do Roberto Carlos (Minha mãe achava que eu estava com depressão porque eu me fechava em um quartinho e ficava horas ouvindo e cantando as mesmas músicas). Minha mãe me contou que eu quando era bebê, chorava muito, demais mesmo. Tinha manias e todo aquele pacote do espectro (que ninguém na época conhecia). Era década de 80 em Belém do Pará, então, nem se falava em autismo, principalmente autismo em meninas. Era algo impensável na época e naquela região. Tudo o que se conhecia era o autismo severo e que se apresentava apenas em meninos.
Os problemas começaram mesmo na minha pré-adolescência. Era início da década de 90. Fui morar em Recife com minha mãe (ela foi transferida para trabalhar lá) e deixei meu pai em Belém. Foi uma dor profunda porque ele era meu "suporte master". Sofri muito mas tentei me adaptar a este novo mundo. Cidade nova, apartamento novo, pessoas desconhecidas, assustador mas ao mesmo tempo era empolgante. Entretanto como cheguei no meio do ano na nova escola, enfrentei muitos desafios.
Sofri muito bullying, inclusive dos próprios professores. Eu era calada, sem amigos e sentava na última cadeira (o famoso paredão) para que ninguém me notasse ali. E como eu já estava apresentando dificuldades para enxergar, às vezes eu copiava o caderno de alguma colega ou quando não tinha ninguém, simplesmente não copiava nada do quadro.
Minhas notas despencaram. Começaram as apresentações de trabalhos em grupo e eu passava muito mal quando eu era obrigada a falar em público. Eu começava a ter taquicardia desde o dia em que descobria que eu teria que falar lá na frente. Taquicardia, suor frio, enjôos, tontura e escurecimento na vista. Eu gaguejava e não conseguia concluir o raciocínio de tanto nervoso. Resultado: notas baixas. Porque o professor avaliava individualmente cada um que se apresentava. O pior é que eu sabia todo o conteúdo! Mas não conseguia me expressar. Aqueles milhares de olhos me focando me tiravam totalmente do rumo.
Passei depois de fazer algumas recuperações, não sei como. Acho que só passei porque as provas eram escritas. Mas mesmo assim eu tinha dificuldade em estudar porque agora eu estava só. Quem estudava comigo era meu pai e nisso eu sentia muita falta.
Já no condomínio onde eu morava as coisas foram diferentes. Fui muito bem aceita na turma de crianças de lá, eles sempre me chamavam para brincar e eu me senti completamente pertencente àquele grupo. Foi um alívio para mim, pelo menos ali, porque eu me encontrava. Foram meus únicos amigos naquela época da minha vida.
Como eu estava na fase de pré-adolescência, fui naturalmente florescendo e me desinibindo mais. Mas claro, aquele era o momento. Eu estava deixando de ser criança e estava "subindo de nível". Era natural que eu parecesse mais independente e desinibida.
Mas no colégio continuava sendo um pesadelo. Me lembro certo dia, em que um professor de matemática estava fazendo a chamada e ele só conseguiu ouvir minha voz baixinha quando chamou pela terceira vez. Então ele disse: "olha, ela tá viva!" E todo mundo riu. E continuou: "A gente nem sabe que ela existe, parece morta!". Fiquei arrasada com as risadas que vinham de todos os lados.
Neste mesmo dia, com todo esse estresse acabei tendo uma super dor de barriga e corri para o banheiro. Só consegui sair de lá quando estava próximo do horário da saída. Foi traumatizante pra mim.
E os dias tenebrosos se passavam. Na hora do recreio eu sempre procurava uma parede e sentava encolhida, abraçando os joelhos, como uma espécie de proteção. E ficava ali, quase paralisada até acabar o bendito e longo recreio. Aliás, era para mim a pior hora, a hora da socialização. Era ali que o bullying se intensificava, as provocações e os risinhos apareciam e eu conseguia observar o falatório ao pé de ouvido de colegas olhando pra mim.
Eu não lembro de ter contado isso para minha mãe. Então, para todos os efeitos, ela achava que eu estava feliz da vida. Claro, um aspecto que vou abordar nos futuros posts é sobre o tal "masking".
Então como o sofrimento era na escola mas no condomínio eu conseguia "relaxar", eu conseguia mascarar todo meu trauma, como se não estivesse acontecendo nada demais. E mascarava até para mim mesma. Achava que aquilo tudo era normal quando um aluno chega de outra cidade no meio do ano e que com o tempo as coisas iriam se ajeitar. Só que isso não aconteceu.
Para um autista, pior do que uma situação ruim em que ele "mascaradamente" esteja pelo menos tentando manter o controle, é uma nova mudança. E não é só de rotina não. Mudança de cidade novamente! Mudança de tudo de novo!
Minha mãe me comunicou que aquela agência iria fechar e que, para não perder o emprego, precisaria ser transferida novamente. Desta vez para Macapá, no Amapá.
Eu entrei em pânico com a notícia. Lembro que fiquei em um choque tão profundo que dormi durante 24 horas com a roupa do balé. E depois fui perdendo a vontade de continuar indo para a escola de dança e de música. Fiquei apática.
Minha mãe, preocupada, tentou me enviar a uma psicóloga para resolver minha "depressão".
Quando cheguei lá, a psicóloga simplesmente me perguntou o que eu estava fazendo ali e eu respondi: "não sei, foi minha mãe que me mandou pra cá". E depois ela ficou fazendo perguntas da minha vida e eu respondendo. Nas outras sessões ela simplesmente ficava em silêncio e eu também (o que eu ia falar?). Até que um dia resolvi não ir mais. Como minha mãe mandava a empregada ir comigo, foi fácil "matar" essa sessão.
Mas depois ela ficou sabendo e não lembro o que houve depois.
O fato é que nós fomos para Macapá. Eu tinha uns 13 ou 14 anos. Ficamos 3 meses dentro de um quarto de hotel porque houve algum problema com as coisas da nossa mudança. Fui para um novo colégio, e como sempre, as pessoas me estranhavam. Mas ali pelo menos eu consegui fazer alguma amizade. Acho que pela primeira vez além da minha melhor amiga eleita, eu consegui fazer realmente parte de um grupo na escola.
Então aos 16 comecei a namorar, ir para as baladas com amigos e consegui ter uma vida "minimamente" normal. Não me queixo da minha adolescência, acho que aproveitei bastante. Aprendi melhor a mascarar, sentia dores generalizadas no corpo e não sabia o que era, então ignorava. Achava que era cansaço de farra.
Eu frequentava a igreja batista e tive muitos amigos por lá. Confesso que eu gostava de ir à igreja apenas por causa das amizades. Mas não conseguia ver muito sentido nas regras e compromissos religiosos. Sempre acreditei em Deus e sempre gostei de me comunicar com Ele em minha intimidade, longe de holofotes. Mas para fazer parte daquele grupo da igreja, eu topava tudo. Ir aos encontros, eventos, batismo, tudo.
Também vi muita coisa lá que é melhor nem comentar. Segredos de bastidores mesmo. Eu observava e observava...
Mas enfim, aos 18 eu já não queria mais estar lá no Amapá. Achava a cidade pequena, sem ter muito o que fazer e muitos amigos meus estavam indo embora, fazer vestibular para fora do Estado. E outros foram para Mogi das Cruzes, SP. Eu queria muito ir, eu queria viver a experiência de morar sozinha, ainda mais em São Paulo. Mas meus pais não deixaram. O máximo que consegui foi voltar para Belém e morar com meu pai. E assim fui.
Passei no vestibular para Adm de Empresas na Unama e fui morar com ele. Mais uma mudança de cidade, mais choque. Mas dessa vez por escolha minha. Não foi fácil. Meu pai ainda era muito rígido e queria me tratar como se eu ainda fosse aquela garotinha de 11 anos que ele deixou no aeroporto.
Aos poucos fomos nos entendendo. Mas eu fazia sempre o que ele queria. Tinha que ir à igreja aos domingos de manhã. Só que dessa vez não consegui mais ter nenhum amigo lá. Então comecei a ir por obrigação. Rotina. Nos outros dias a minha rotina era faculdade e casa. Tinha que obedecer as regras da casa. Eu tinha um namorado e ele já tinha como costume, me esperar na frente do prédio. Tive alguns namorados. Comecei a sair e chegar no outro dia, para o desespero dele, afinal já era idoso e isso acabava com o coração dele. Não saber onde eu estava, que horas eu ia voltar ou se pelo menos ia voltar.
Terminei a faculdade e fui trabalhar. E meu histórico de trabalho sempre foi péssimo. Eu simplesmente abandonei todos os lugares onde trabalhei. Simplesmente chegava o dia em que eu não ia mais. Tive muita dificuldade de socialização dentro desses ambientes. E meu pai foi quem me deu suporte financeiro. Eu me sentia mal por isso. Adulta e imprestável, dependente dos pais. Era o fim pra mim. Eu realmente não sabia o que se passava no meu cérebro. Eu queria estar lá, trabalhando, mas não conseguia. E ouvi muitos comentários maldosos em relação a isso.
Casei depois de alguns anos, com 26 de idade. Meu casamento não foi como eu esperava. Na verdade eu queria alguém que tomasse conta de mim, pois minhas disfunções executivas estavam ficando cada vez piores. Eu não conseguia dirigir, não conseguia raciocinar para cozinhar e fazer coisas do dia a dia, não conseguia resolver questões burocráticas, não conseguia trabalhar em nenhum lugar, as crises de ansiedade aumentando e achei que um casamento iria me corrigir, afinal meu pai já estava bem idoso e também precisava descansar dessa responsabilidade comigo. Entretanto, sempre foi incutido na minha cabeça desde bem criança, como um "mantra", que meu problema é que eu sempre fui mimada e preguiçosa. E fui programada para acreditar nisso de tal forma que, se eu casasse, o casamento iria me colocar nos eixos. Ledo engano. Foi uma triste experiência. A única coisa boa foi a minha filha, Nicole.
Logo alguns meses depois que a Nicole nasceu, meu pai, que estava casado novamente mas estava muito acamado, faleceu. Era fevereiro de 2014. Entrei em uma super mega crise. Abracei o corpo dele durante muitos minutos para que ele não me deixasse. Uma enorme tristeza começou a me dominar e meus stims ficaram totalmente descontrolados. Me balançava para frente e para trás freneticamente. Foi um período muito depressivo pra mim, além do próprio casamento afundando.
Depois que resolvi me separar fui morar no Rio com ela. Abril de 2017. A sensação de vazio depois que o casamento se esvaiu foi catastrófica. De repente me vi sem o meu "suporte" novamente. A pessoa que resolvia "tudo" pra mim (pelo menos na minha cabeça) estava há milhas de distância e por escolha minha. Não me arrependi em nenhum segundo.
Minha mãe me ajudou em todo esse processo. Me ajudou em tudo assim como minha tia e prima que já moravam no Rio.
A essa altura eu tinha frequentes crises, que pareciam queda de pressão ou algo assim. Do nada surgia uma aceleração cardíaca, a cabeça com uma pressão que parecia que ia explodir, escurecimento na vista e náuseas. Eu não sabia o que era isso e confiei que era apenas queda de pressão devido ao calor do Rio. Mas eu escondia isso de todo mundo. Tive alguns desmaios de segundos, mas eu não caia toda mole. Eu ficava paralisada. Se eu estivesse em pé, eu pendia para o lado, em uma parede e ali ficava. Se eu estivesse sentada, eu caia para o lado até o chão igual um boneco. Durinha. Eu achava isso bem esquisito. Mesmo assim eu não falava nada. Aliás eu sempre fui boa em esconder ou disfarçar desconfortos ou crises.
Depois mudei para Mogi das Cruzes com minha mãe e filha. Timing totalmente fora kkk mas fui. Ali, pela primeira vez na vida, consegui morar sozinha (com minha filha). Aluguei um ap ao lado do ap da minha mãe e pude viver a tão sonhada experiência. Ela me ajudou a comprar os móveis e tudo o que precisava para esta nova vivência.
E foi muito boa, apesar das minhas disfunções executivas, eu ali, conseguia finalmente...pensar! Foi meio bagunçado cuidar do meu canto no início, mas com o tempo tudo foi se ajeitando. Quando eu era casada, meu ex queria a casa cheia de empregados de tal forma que eu me sentia uma estranha dentro na minha própria residência.
De repente todo aquele mal estar foi diminuindo, as crises cada vez mais esparsas. Agora, só tinha crises fortes depois das idas ao shopping ou quando tinha que ir ao aeroporto viajar.
Finalmente eu poderia ter meus stims à vontade, sem ninguém para estranhar, assim como minhas manias. Eu me senti literalmente um "pinto no lixo". Kkkk.
Depois mudamos para São Roque, também interior de SP, onde vivo atualmente. Minha tia que me acolheu no Rio de Janeiro infelizmente acabou falecendo no nosso segundo ano morando na cidade. Ela tinha se mudado anos antes para São Roque e viemos para ficarmos juntas. Ficou a minha prima, uma pessoa que amamos muito e nos dá todo suporte.
Mas este post já ficou longo demais então nos próximos já vou começar a pontuar alguns momentos da minha vida onde o autismo ainda interferiu muito.
Até mais!
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